24 agosto 2013

Capítulo 26

ESCRITO POR: MAYRA BORGES


Fogo costuma deixar sinais de fumaça, talvez tenha definitivamente apagado. Esse pensamento atravessou a minha mente enquanto eu olhava para a tela do computador sem esperanças, balancei a cabeça negativamente, dei de ombros e voltei a me deitar. Há quantos dias ele não aparecia? Duas semanas? Havia perdido as contas e havia um sabor ácido de ressentimento em mim.
Instintivamente olhei para a gaveta onde guardara as passagens, não era minha ideia desistir daquela viagem, essa hipótese em momento algum passara pela minha cabeça desde que as comprara. Bom a verdade era que eu nunca quis conhecer Recife estava indo por conta de alguém que muito provavelmente nem saberia da minha estadia na cidade, pensar nisso apurou a acidez em minha boca. Volta e meia o rosto dele me vinha à mente e então as lembranças da nossa última conversa me invadiam, aquele corpo despido e todo o prazer proporcionado à distância, delírio, pra nunca mais.
Bastaram às recordações pra eu despertar. E foi então que a luxúria avançou ao ódio e se fundiu a ele, dois sentimentos fortes demais e completamente entrelaçados. O ódio em meio ao desejo e o desejo em meio ao ódio. O odiava por estar longe, por sempre ter que ir embora e pela mania insuportável de desaparecer, odiava sentir-me como um brinquedo abandonado no canto do armário porque havia outro brinquedo melhor. Odiava sentir-me irrevogavelmente frenética, entregue e sem dono... O odiava ainda mais por ser a causa disso e ao mesmo tempo desejava-o por tudo que me provocava, porque era lindo, esperto e por ser tão cafajeste. Aos poucos ia me transformando em paradoxo, sabia que estava errada, ou será que não estava? Balancei a cabeça de novo como se os pensamentos fossem moscas zumbindo no meu ouvido e aquele gesto pudesse afastá-las, não pode.
Em meio a pensamentos perdidos e embaralhados revertia o ódio a meu favor ou contra mim, odiava meus gestos tolos de entrega, minhas palavras tolas de encanto e meus desejos todos, armadilhas. Não deveria ter sido tão complacente, tão confessa e tão estúpida. Parte de mim queria negar o inegável enquanto outra parte queria apenas estar vulnerável, nesse mar enevoado, violento e incompreensível que é o ser mulher.
Ali deitada em minha cama comecei a alimentar uma raiva intempestiva, e o rosto dele me vinha a mente com aquela expressão propositalmente despreocupada, tudo nele era tão encantador que soava extremamente falso como se tudo aquilo fosse premeditado e estudado pra surtir exatamente aquele efeito irracional e irrefreável no qual o ter consciência não era o bastante pra fugir. Então fui tomada por uma necessidade urgente de meter-lhe a mão no meio da cara só para desmanchar aquele ar de cínico, vontade de esmurrar, arranhar, bater com todas as minhas forças e esperar que reagisse, mas acontece que em meio a esse ataque violento, forjado; havia a minha rendição. E o tremor que agitava meu corpo já não era puro ódio, mas sim uma amalgama de desejo pueril e a minha vontade era a de ser dominada. Queria sentir aquelas mãos segurando meu rosto, queria estar sem saída, contra a parede, queria que ele calasse meus gritos com um beijo indecente. Ansiava pelas mãos nos meus pulsos e o peso de seu corpo sobre o meu, queria a falta de ar e de forças, ao mesmo tempo em que precisava xingá-lo com as palavras mais baixas do meu vocabulário. E cuspir na cara dele o quanto era ordinário, cafajeste e cínico e confessar a minha parcele de culpa e todo o cinismo compartilhado.
Eu era dele, mas ele não era meu, então se acontecesse, não haveria segunda vez, depois do gozo anunciado e de algumas horas a mais sairia pela porta intitulando aquela como primeira e última vez, sem direito a despedida. Os pensamentos atropelavam-se em minha mente formando pilhas de coisas sem nexo.
            E então novamente as lembranças me agitaram os sentidos, havia urgência por prazer, e que se danasse todo o resto, naquela mistura homogênea de luxúria e ódio eu resolvi já não pensar e me dei a mim mesma em meio a imaginações e lembranças. Havia um gozo sem pudor, havia os dentes na minha própria pele e acentuados arranhões na carne crua, me fiz reflexo do descontrole. Descontei em mim a frustração da ausência e o sentido inexistente nas linhas tortas do destino. Então me derramei sozinha, noite adentro, naufraguei no meu mar de ilusões em preto e branco, suspendendo o peso das mãos no limiar da dor. Solidão completa, prazer pela metade. O riso forçado acompanhou o gozo insatisfeito; farsa que aumentou a sensação de solidão e estupidez dando espaço pra sinceridade daqueles braços em volta dos joelhos e das duas lágrimas sentidas.
            - Você não é a mulher que pensa ser, nem adianta tentar._disse a mim mesma em voz alta.
Levantei-me da cama um tanto zonza, tropecei no tapete e bati com o joelho na mesinha de cabeceira.
            - Merda!

Fui até a cozinha e abri a geladeira à procura de algo que pudesse beber, havia uma garrafa de cidra esquecida do Natal passado, soltei um riso seco e sem graça. Olhei o relógio já passava de uma da manhã e era a única bebida em casa, tirei a rolha e bebi no gargalo, provavelmente tudo que eu teria era uma dor de cabeça no dia seguinte e mais nada, se tivesse sorte talvez dormisse um pouco. 

20 agosto 2013

Capítulo 25


ESCRITO POR: MAYRA BORGES


Um filme banal, com roteiro ruim e sem nenhum diretor, com uma protagonista inábil e sem talento algum para atuação, intitulado: minha vida. Mas que, no entanto garante alguma espécie de reviravolta em qualquer momento, e se por algum motivo você continua aqui é porque acredita nisso, eu também acredito e sinceramente não espero decepcionar.

Quis ao máximo evitar protagonizar mais uma cena clichê, mas não pude esquivar-me da vontade de perambular pelas ruas sem destino, o asfalto estava gasto e úmido, e entoava alguma poesia que eu não conseguia captar. Por sua vez o céu tinha ralas camadas de nuvens revelando e ocultando pedaços de um azul pálido.  No primeiro momento estava sem rumo e os pensamentos embaralhavam-se e perdiam-se antes de se tornarem inteligíveis e eu apenas observava o tempo que parecia parado naquela manhã já por completo desperta. Foi então que distraída como estava acabei por esbarrar em um homem na rua, foi algo rápido e confuso e por um momento senti o estômago afundar, em meio à confusão notei cabelos quase na altura dos ombros, a pele branca, os pequenos olhos castanhos:
- Vincent? _ o nome escapuliu da minha boca automaticamente, mas tão logo pronunciado percebi o engano, óbvio. Havia uma mancha disforme no rosto do rapaz e os olhos nem eram tão pequenos se olhasse bem.  
- Desculpe!_ apressei-me em dizer com um sorriso amarelo, o moço assentiu num maneio de cabeça e retomou seu caminho.

         Quantos destinos existem por ai? Quantos deles podem cruzar com o nosso? É impossível saber, mas naquele momento o destino me ofereceu uma rota alternativa foi como um clik e de repente a imagem a minha frente entrou em foco. O fato é que, não há nada incomum em esbarrar com alguém no meio da rua, mas aquele encontrão e a memória que ele despertou em mim não eram um simples acaso e mesmo que fosse... Voe Miriam! Não, não é metáfora, voe, pegue um avião, vá atrás do que você quer. Vincent.

         Mudei meu rumo, desci apressadamente a rua até chegar ao ponto de ônibus, estava finalmente obstinada e sentia a vitalidade daquela recente decisão percorrendo meu corpo. Parei em frente à agência de viagens e antes que eu pudesse parar pra analisar o tamanho da minha profundidade já estava sentada conversando com a moça sobre datas e preços de passagens, quando dei por mim já havia passado o cartão de crédito sem tempo para reflexões e arrependimentos. 

CONTINUA...

10 agosto 2013

Capítulo 24


ESCRITO POR: MAYRA BORGES


Chegamos à padaria e de repente descobri, redescobri, como fosse, que havia paz ali, aconchego, uma espécie de refúgio, não era só o cheiro de pão fresquinho ou os doces aromas que pairavam no ar. Ali não era o meu lugar favorito por ser lindo ou fazer o melhor café, era palco de lembranças memoráveis que eu não poderia esquecer nunca, mesmo as mais tristes.
Havia uma lanchonete a parte para os clientes que gostavam de tomar café ali mesmo, muitas vezes havia ficado horas ali com uma xícara de café e um livro qualquer, sempre que não queria a solidão como cúmplice eu descia a rua e entrava lá.
                - Bom dia, o que vão querer?
                - Dois cafés fortes, por favor._ pedi.
                - Fiquem à vontade que já sirvo._ disse o atendente.
Dirigi-me a mesinha do canto, mais confortável e reservada, o Carlos me seguia com passos duros e semblante pesado.
                - Por que você me trouxe aqui?
Abaixei a cabeça e suspirei.
                - Foi aqui que a gente começou, é um lugar importante, não acha?
                - O que quer dizer com isso?
                - Que me sinto à vontade aqui, algum problema?
                - Não.
Ele olhava para além da janela, como se procurasse por respostas inexistentes.
                - O que você quer me dizer?_ ele perguntou.
O rapaz veio entregar nossos pedidos e se afastou rapidamente.
                - Lembra que me perguntou por que eu não consigo mais acreditar no amor que você sente por mim?
                - Uhum._ ele bebericou o café e por fim olhou pra mim.
                - É tão difícil te dizer isso.
                - É igualmente difícil ficar aqui esperando você tomar coragem pra me dizer que não quer mais ficar comigo, inventando motivos pra essa decisão, dando voltas pra dizer que não consegue mais sentir o meu amor porque foi você quem deixou de me amar e já faz muito tempo._ ele jogou todas aquelas palavras aos montes na minha frente, me deixando atordoada, confusa.
                - Não é bem isso...
                - Então o que é?
                - Eu não estou procurando desculpas, eu estou falando a verdade. O amor não é só de palavras, não se alimenta de si próprio, ele requer cuidado, atenção, tempo, requer gestos.
                - E eu nunca te dei nada disso?_ finalmente vi que os olhos dele estavam marejados de lágrimas pesadas.
                - Nunca é tempo demais, mas já faz algum tempo que estamos distantes e não me refiro apenas ao físico.
                - E o que você quer que eu faça?
                - Nada.
                - Você também não coopera, como é que eu posso fazer alguma coisa se eu não sei o que está errado?
                - Não percebeu o quanto tenho estado distante de você? Antes você me buscava, me trazia pra perto, enfrentava tanta coisa por mim e hoje? Você nem se importa mais em me ligar.
                - Não queira que as coisas sejam eternamente as mesmas.
                - Não quero, mas a meu ver num relacionamento as pessoas criam laços e não nós. Criam vínculos, não me sinto mais pertencente a um sentimento em comum, mas em uma coisa você está certo.
                - O quê?
                - Talvez eu tenha deixado de te amar a muito tempo, e pra mim não dá mais.
                - Há quanto tempo?
Dei de ombros.
                - De que importa?
Ele levantou o braço pedindo a conta.
                - Você tem razão, nada mais importa aqui._ ele secou as lágrimas e eu também sequei as minhas.
                - Não queria que as coisas chegassem a esse ponto, mas não vou te pedir mais nada.
                - Melhor assim, Miriam. Só uma coisa, você se afastou de mim e eu respeitei o seu espaço, quis seguir no teu ritmo mesmo sem saber como as coisas funcionavam pra você, em nenhum momento eu deixei de te amar, nem mesmo agora.
                - Amar é quase como andar de bicicleta, se a gente parar cai. O amor não pode parar. Eu quis ir embora e você me deixou ir, não é culpa sua, mas agora eu simplesmente não posso mais voltar.
                - Seria bonito te ver voltar.
                - Eu sei.
Ele colocou o dinheiro da conta sobre a mesa, arrumou a gola do casaco e ficou de pé. Eu podia ver cada linha de expressão daquele rosto refletir um desânimo e uma tristeza que me fazia triste também.
                - Mas se o que você quer é voar, passarinhos foram feitos pro céu e não pra gaiolas. Você não nasceu pra morar no meu peito, eu insisti, desde o começo. Foi tão bonito ter você, e você sabe que está doendo agora, mais que todas as vezes que brigamos.
                Fiz que sim com a cabeça. Ele veio até mim e me deu um beijo na testa e antes de me dar as costas, disse:
                - Voe.
Eu vou voar, pensei. Tomei todo o café já um pouco frio. E percebi que apesar da fina camada de tristeza que se acumulava em algum lugar do meu peito havia o riso, estampado, decidido, destemido, riso solto... Era impossível que tudo aquilo não doesse, estava doendo, mas não pesava, não maltratava, não era ferida profunda, nem mágoa nem nada, era uma despedida, era a estação final daquela linha, mas tudo bem eu sabia que mais cedo ou mais tarde chegaria outro trem, encontraria novos caminhos. E percebi que sozinha eu estava e ficaria bem. 



03 agosto 2013

Capítulo 23


ESCRITO POR: MAYRA BORGES



[...] ouvi a campainha tocar:

Aquele som foi como um despertador que ao invés de me fazer acordar do sonho ruim me trouxe a tona uma espécie de angústia amarga da qual eu inutilmente tentava me esquivar; como se fosse possível ignorar certos tipos de sentimentos corrosivos.
 Passei a toalha em volta do corpo e fui até o quarto, peguei a primeira roupa que encontrei uma calça jeans desbotada e uma blusa azul de manga comprida, prendi os cabelos em um rabo de cavalo enquanto ouvia a campainha tocar mais vezes. Saí do quarto rapidamente, mas estanquei em frente à porta, senti medo de não ter coragem de falar quando eu desse de cara com aquele rosto tão familiar de olhos verdes, cabelos ondulados e sorriso indefinido. Olhei em volta sem saber o que procurava; talvez uma poção mágica que me fizesse encolher ou crescer demais ou então sumir! Um sorriso nervoso surgiu nos meus lábios e eu me obriguei a afastar os pensamentos tolos da cabeça.
                -Miriam?!
A voz dele me deu impulso necessário para girar a chave na fechadura destrancando a porta por fim; abri-a devagar, como se esperasse que ele não fosse estar mais lá. Isso me deixaria aliviada com certeza, mas não resolveria o problema, não era o momento de fugir, eu precisava enfrentar. Dei de cara com aqueles olhos verdes manchados de castanho claro, ele trazia o ar de sempre em seu rosto, despreocupado, quase inocente. Tinha a tão irritante barba por fazer, ao perceber meu olhar inquisidor foi logo tratando em se desculpar.
                - Não tive tempo.
                - Você nunca tem tempo, não é?
Ele me olhou feio e me puxou pra um abraço do qual eu logo tratei de me desvencilhar.
                - Tá tudo bem com você, ficou mesmo chateada por eu não ter feito a barba?
                - Não, não é isso. Me dá um segundo, sim?_ não é só isso, pensei comigo mesma.
                - Ok.
Ele sentou no sofá e eu voltei pro quarto. Devido às muitas noites sem dormir era impossível não demonstrar o quanto eu estava cansada, é claro que isso me deixava mais exposta, frágil, meu cansaço era uma arma contra mim. Disfarcei as olheiras com maquiagem, passei algum batom claro nos lábios, peguei minha bolsa e voltei para a sala.
                - Ué, você vai sair?
                - A gente vai.
                - Pra onde então?
                - Lembra aquela padaria, a minha preferida?
                - Acho que sim._ fez cara de que estava tentando lembrar.
                - Nosso primeiro encontro, lembra que estava chovendo e a gente entrou lá?
                - Ah sim._ a compreensão espalhou-se em seu semblante.
                - Eu odeio essa barba, você sabe, não é?
                - Para de implicar.
Revirei os olhos e dessa vez consegui sorrir um pouco.
                Pegamos o elevador e descemos a rua em silêncio. Ele havia enfiado as mãos nos bolsos do casaco desbotado que era evidentemente muito maior que ele, definitivamente estar bem vestido não era seu forte. Tudo que podíamos ouvir era o barulho dos carros e os nossos próprios passos na calçada. 
                - Tá tudo bem com você?_ ele insistiu.
                - Acho que sim, mas você sabe que a gente precisa conversar, não é?_deixei escapar, mais falando pra mim mesma que para ele.
                - Temos mesmo? Vamos ter que passar por mais uma dessas suas crises sem sentido? Para Miriam, poxa, você sabe que eu te amo.
Crises sem sentido? Era assim que ele via meus sentimentos? Antes mesmo de eu falar qualquer coisa ele já foi tentando se defender, se desculpar o que me fez procurar o exato momento em que havíamos entrado no modo automático daquele relacionamento. Então era óbvio, não é mesmo? Ele estava se acusando, não era pelos simples fato de me conhecer, ele sabia que havia alguma coisa errada e estava tentando compensar, era assim o tempo todo, mas por quê?
                - Engraçado você dizer isso assim.
                - Por que é engraçado?
                - Porque quanto mais você afirma isso, menos eu consigo sentir que é verdade.
Notei um tom irritado na voz dele, enquanto a minha, para minha surpresa; estava firme e calma. Ele parou na minha frente e colocou as mãos nos meus ombros obrigando-me a encará-lo.
                - Por que você não consegue mais sentir o meu amor?
                - Não vamos discutir isso no meio da rua, não assim.
Ele tirou as mãos dos meus ombros e começou a andar na minha frente, mais apressado, como se quisesse fugir de mim. Continuei no meu passo, não havia pressa e era o tempo necessário de organizar meus pensamentos de uma forma lógica do jeito que fosse possível fazê-lo.

CONTINUA